Bala no cérebro fez soldado espanhol ver o mundo ao contrário
A neurociência tem uma grande dívida para com os indivíduos que sofreram ferimentos graves no cérebro, cujas lesões permitiram aos médicos estudar o funcionamento da mente em condições que não poderiam ser recriadas eticamente em laboratórios.
Um exemplo é o caso do paciente M, que começou a ver o mundo. de trás para frente após ter sido baleado na cabeça durante a Guerra Civil Espanhola.
Anteriormente, os neurologistas acreditavam que o cérebro era composto por regiões distintas separadas por limites abruptos com pouca ou nenhuma sobreposição.
No entanto, o dano sensorial do paciente M desafiou essa teoria e permitiu ao médico Justo Gonzalo Rodríguez-Leal elaborar uma nova teoria da dinâmica cerebral.
O paciente M lutou ao lado dos republicanos na Guerra Civil Espanhola e foi baleado na cabeça em um campo de batalha em Levante, Valência, em maio de 1938. Após acordar do coma duas semanas depois, ele não relatou nenhuma visão em seu olho esquerdo e apenas um leve brilho no direito.
Com dois buracos no crânio por onde a bala entrou e saiu, o homem confundiu os médicos ao recuperar a saúde sem precisar de cirurgia ou cuidados especiais.
Rodríguez-Leal observou o paciente M durante as cinco décadas seguintes e descreveu uma série de sintomas altamente desconcertantes.
O homem via tudo multiplicado por três e percebia cores “descoladas” dos objetos. O mais incomum de tudo é que o paciente M via tudo como se tivesse sido invertido, incluindo homens trabalhando de cabeça para baixo em um andaime.
Essa mudança sensorial também afetou o sentido do som e do toque do paciente, processados por seu cérebro como se tivessem origem no lado oposto de seu corpo. Apesar dessas anomalias, o homem levou uma vida normal graças ao desenvolvimento inconsciente de estratégias de enfrentamento, como atenção seletiva a estímulos intensos.
Rodríguez-Leal sugere em seu livro, Cerebral Dynamics, que a bala parece ter impactado a região parieto-occipital esquerda do cérebro do paciente M.
Observando as consequências dessa lesão, ele postulou que o cérebro poderia não estar dividido em regiões distintas, mas sim organizado em gradientes que se espalham por todo o córtex, com diferentes regiões separadas por transições graduais.
A identidade do paciente M nunca foi revelada, mas sua filha, Isabel Gonzalo, explicou em uma entrevista ao El Pais que ele viveu uma vida longa e saudável, falecendo no final dos anos 1990.
Apesar de ter vivido por 60 anos em um mundo de trás para frente, o ex-soldado aparentemente não se preocupou com sua condição peculiar. Mais importante, o cérebro invertido do paciente M ajudou a revolucionar a neurociência.
Fonte:
[Mundo]