Alguma coisa acertou a Via Láctea e não sabemos o que foi

Via Láctea

Lembra do projeto Gaia? Aquele satélite da Agência Espacial Europeia (ESA) que está mapeando a Via Láctea inteira? O satélite, além de medir a posição de mais de 1 bilhão de estrelas, ainda está determinando a velocidade de quase 100 mil delas.

Com a combinação das duas informações é possível estabelecer a distância até elas com extrema precisão. No fim das contas, o Gaia está produzindo o mais preciso e completo mapa da Via Láctea.

Com isso, as estruturas já conhecidas, como o espalhamento de estrelas nas proximidades do Sol, estão revelando detalhes importantes que ajudam a explicar a morfologia da nossa galáxia.

Mas o mapeamento está revelando também novas estruturas, como a deformação nas regiões exteriores. Essas novas estruturas só fazem aumentar a lista de perguntas ainda não respondidas.

A última descoberta é ainda mais intrigante.

A nossa galáxia possui alguns conjuntos de estrelas enfileiradas formando longas linhas. Essas “filas” de estrelas são originárias da destruição de aglomerados globulares que atravessam a nossa galáxia.

Fazendo esses mergulhos perigosos, a gravidade da Via Láctea vai produzindo forças de marés, fazendo com que as estrelas sejam arrancadas do aglomerado e, como resultado da combinação das forças envolvidas, elas se alinham.

Recentemente, Ana Bonaca, uma astrônoma envolvida com a missão Gaia, mostrou em uma conferência que a maior dessas fileiras de estrelas, chamada GD-1, tem uma interrupção. Sim, tem um buraco, como se alguma coisa a tivesse atravessado!

Para ser mais preciso, o esperado era que a linha tivesse de fato uma interrupção, exatamente no local onde o aglomerado se rompeu.

Nesse ponto, forma-se uma linha para cada lado e as estrelas seguem em fila, uma na direção oposta da outra. O que Bonaca apresentou nessa conferência foi que além desse buraco “progenitor”, a linha de GD-1 tem um outro, formando um vazio bem no meio da linha.

Imagem de linha GD-1 — Foto: Ana Bonaca/Gaia
Imagem de linha GD-1 — Foto: Ana Bonaca/Gaia

Mais ainda, o furo nessa linha tem em suas bordas muitas estrelas espalhadas (“spur” na figura), fruto da interação com o objeto que a atravessou. Mas, o que pode ter sido?

Para causar o estrago que Bonaca e seus colaboradores encontraram, o objeto precisaria ter muita massa.

Mas, em princípio, massa está associada a luminosidade, mesmo que seja em comprimentos de onda que não enxergamos como rádio, raios-X ou infravermelho.

Então, deveria ser um bicho grande e brilhante, mas cadê? Nada foi encontrado.

Pior, a massa estimada para gerar o estrago observado gira em torno de alguns milhões de massas solares. Nenhuma estrela tem tudo isso.

Na verdade, essa é a escala de massa de buracos negros supermassivos, daqueles que habitam o centro das galáxias.

No centro da Via Láctea tem um de cerca de 4 milhões de massas solares e o buraco negro no centro de M87, que teve imagem e tudo, tem da ordem de bilhões de massas solares.

Mas o problema é outro, a ideia corrente é que uma galáxia possua apenas um buraco negro supermassivo. Colegas meus na USP até encontraram casos em que poderia haver dois buracos negros supermassivos na mesma galáxia, mas ambos estariam no centro dela, como resultado da colisão entre duas galáxias muito tempo atrás.

Teria, então, um outro buraco negro atravessando nossa galáxia? Difícil dizer.

Bonaca e colaboradores ainda admitem a hipótese de que o agente do impacto esteja dentro da Via Láctea, mas escondido por trás de nuvens de poeira, ou confundido com estrelas da nossa galáxia.

A equipe já observou GD-1 com outros telescópios para medir a velocidade das estrelas para, de fato, identificar aquelas que fazem parte da fila, separando aquelas que parecem estar nela, mas, na verdade, é apenas um efeito de projeção.

Outra possibilidade, ainda mais esquisita, é que a nossa galáxia teria sido atravessada por um, digamos, pedaço de matéria escura.

Isso seria muito estranho no sentido que não se espera que a matéria escura se aglomere e se concentre em regiões do espaço, como uma nuvem, por exemplo. Pelo contrário, imagina-se que ela esteja dispersa, formando verdadeiros halos ao redor das galáxias.

Dentre as soluções menos especulativas estão galáxias anãs e aglomerados globulares. São categorias de objetos diferentes, com escalas de massa e tamanho diferentes, mas que poderiam produzir estragos semelhantes a depender da sua velocidade.

Objetos menos massivos, como os aglomerados, mas viajando a alta velocidade, produzem o mesmo efeito dinâmico que galáxias anãs, com mais massa, mas que tenham velocidades mais baixas.

Publicado originalmente por:

https://g1.globo.com

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